Carla Gheler (Foto: Divulgação/ CEBDS)
Carla Gheler
Carla Gheler (Foto: Divulgação/ CEBDS)

“O produtor precisa ter retorno na produtividade e na conta bancária”, diz Carla Gheler

Para a especialista em sistemas agroalimentares, a agricultura regenerativa é essencial para a descarbonização

Nelson Valêncio

em 26 de fevereiro de 2025


A afirmação do título desta matéria é de Carla Gheler, coordenadora técnica de Sistemas Agroalimentares do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). Nessa entrevista, ela fala, entre outros assuntos, da agricultura regenerativa, da evolução do setor no combate ao desmatamento e do uso de tecnologias para o avanço de uma produção agropecuária sustentável do ponto de vista econômico e socioambiental. 

De que forma os sistemas agroalimentares podem contribuir para os esforços de descarbonização?

Os sistemas alimentares podem contribuir de diversas maneiras. Uma das principais – que vem crescendo bastante, não só no Brasil, mas no mundo – é a adoção de técnicas de produção sustentáveis e integrativas, que é o caso da agricultura regenerativa. Trata-se de uma estratégia de produção com práticas agrícolas sustentáveis, não somente no aspecto socioambiental, mas também econômico-financeiro. O produtor precisa ter um retorno na produtividade e na sua conta bancária. A ideia é que ele seja estimulado a fazer essa transição, deixando de lado a forma de agricultura convencional e adotando uma agricultura mais regenerativa, que além de utilizar os recursos do ecossistema, também traga impactos positivos para a natureza. 

Como a agricultura regenerativa vem se desenvolvendo?

agricultura regenerativa. entrevista Carla Gheler
Foto: Jenya Smyk/ Adobe Stock

O termo agricultura regenerativa surgiu em 1983, nos Estados Unidos, e até então se usava o conceito de sustentável ou não se usava conceito algum. A partir de 1983, o movimento cresce, toma um corpo bastante grande e as mudanças climáticas tornam a demanda mais evidente, já que cada vez mais se discute isto nos fóruns de agricultura. Não há outra forma de pensar em produzir alimento mediante os impactos das mudanças climáticas, que não seja de forma regenerativa e integrativa.

Como poderíamos defini-la melhor?

É um conjunto de práticas que vão reabilitar os sistemas, fazer a recuperação e a manutenção do solo, porque o principal ponto da agricultura regenerativa é a conservação do solo, por ser o principal fator para se ter produtividade de alimentos. Se você aumenta a biodiversidade, melhora o ciclo hidrológico, e permite que a água vá e volte para o sistema agrícola com melhor qualidade. Devemos pensar que a propriedade rural, nesse caso, é um ecossistema e temos uma paisagem agrícola onde várias propriedades podem regenerar um ecossistema maior. 

Na prática, pode citar exemplos?

No mundo temos vários exemplos, a integração-lavoura-pecuária-floresta (ILPF) é um deles, mas uma das práticas regenerativas que já vem sendo praticada no Brasil há mais de 50 anos é o plantio direto, e também a permanência do solo sempre coberto, para evitar a perda de nutrientes, água e de biodiversidade. Estamos falando de biodiversidade do solo, de macro e microbiota. E também evita-se a perda de CO2. Pensando em mudanças climáticas, o solo coberto, que não está exposto ao sol, não perde o CO2 para a atmosfera. 

Por que o ILPF ganha destaque nesse cenário?

Carla Gheler
Foto: Jr Studio Foto/ Adobe Stock

O ILPF é importante porque envolve, além desses critérios agrícolas, os critérios de bem-estar animal. Ou seja, combina-se a produção de alimentos de origem vegetal e animal. Pensando em pecuária, podemos falar também  de avicultura, suinocultura e outras criações que podem ser produzidas dentro desse mesmo sistema. Uma prática que tem aumentado no Brasil é o uso de dejetos animais para produção de energia dentro da própria fazenda. O material que sobra desses dejetos tem sido usado para fertirrigação dentro da própria lavoura. Isso traz junto uma outra premissa da agricultura regenerativa, que é o uso racional de fertilizantes e agroquímicos. Ela não é como a cultura orgânica, que restringe o uso desses produtos, mas entende essa necessidade. Uma das premissas é que se deve reduzir, ou seja, adotar o uso adequado dos insumos.  

Há aí uma redução de custos também…

Sim. Temos visto bastante, nas visitas que fazemos, o uso racional de fertilizantes e agroquímicos. Nessa mesma linha, a implementação de usinas de energia solar é outra forma de redução de custos. Se você pensar em avicultura, que utiliza muita energia elétrica, a adoção de painéis solares também favorece o orçamento do produtor rural. 

Estamos falando de resultados concretos?

Claro. Na agricultura regenerativa, podemos lançar mão de diversas práticas, mas o importante é o resultado. Temos vários critérios para isso, a começar pela questão da melhoria do solo, em termos de qualidade e nutrição. O uso adequado da água e do tratamento depois que ela passa pela propriedade rural também conta. Outra questão é a biodiversidade, que não se limita ao solo, mas também envolve aquilo que está acima do solo, porque temos que considerar a importância dos polinizadores, extremamente importantes para produção de alimentos. E, finalmente, a questão social, que muitas vezes é deixada à margem. Não faz sentido, por exemplo, ter uma propriedade bem adequada ambientalmente, mas que tem trabalho análogo à escravidão. 

Nós teremos na COP30 uma vitrine, em relação a todos esses critérios. O que esperar do evento?

A COP no Brasil toma uma proporção ainda maior, ao pensar que somos um grande produtor de alimentos. No Brasil, infelizmente, o setor agropecuário  é o que mais emite CO₂. Em função disso, temos que trazer o agro para a solução do problema, pois é um dos únicos setores que, apesar de emitir, também sequestra carbono. Segundo o estudo “Carbon farming in the living soils of the Americas”, de 2024, ampliando as práticas de manejo sustentáveis para cerca de 30% da área agrícola das Américas, o que equivale a aproximadamente 334 milhões de hectares, pode-se levar ao sequestro de carbono no solo de 13,1 (±7,1) Pg de CO₂ eq ao longo de 20 anos. Essa mudança nas práticas agropecuárias pode compensar cerca de 39% das emissões de GEE agrícolas no mesmo período. 

O que vamos levar para o debate é exatamente isso: soluções e como o agro pode ajudar na descarbonização, não só com a agricultura regenerativa, mas com outras técnicas. E temos exemplos, no CEBDS, de empresas que vão do campo à mesa. 

Em uma entrevista anterior, você tinha comentado sobre o desmatamento, então a pergunta é: como evoluímos nessa área?

A reativação de vários programas de monitoramento na Amazônia, Cerrado e outros biomas mostram iniciativas de comando e controle, que são importantes e nunca podem ser esquecidas. Precisamos dessas ações para lidar com a existência de alguns gargalos. Primeiro, a questão da regularização fundiária, porque muitas empresas querem investir em áreas e projetos que valorizem a florestas em pé, mas não há regularização fundiária. Isso não passa em compliance nenhum. O outro gargalo envolve a necessidade de os fornecedores e as empresas se adequarem a normas socioambientais, como a rastreabilidade. Temos estudos que mostram que muitas vezes se aumenta a produtividade mudando as práticas utilizadas na propriedade rural, e não avançando sobre a vegetação nativa. Nós temos instrumentos que o agronegócio pode utilizar para reduzir o desmatamento. Valorizar a vegetação nativa em pé é o caminho para isso, junto com comando e controle, além da regularização fundiária, que é uma demanda da área governamental. 

Como a tecnologia pode ajudar nesse processo?

Temos vários exemplos, inclusive de uma associada que rastreia toda a soja que usa, desde a fazenda até o processamento da fábrica. Então, ela sabe de onde a soja saiu, onde foi armazenada e como está sendo utilizada na fábrica. Isso parece fácil, mas não é. Tem um custo, mas o benefício vai além da produção e chega até o consumidor. O que precisamos fazer é sensibilizar mais o consumidor para que ele comece a exigir essas práticas e informações em seus alimentos. Em outras áreas, o agro tem a tecnologia como aliada, por exemplo, na análise de solos para uso racional de fertilizantes e no uso de drones para monitoramento de pragas. O que ainda é um limitador no campo é a falta de conectividade. É importante considerar que nem toda tecnologia precisa ser sofisticada. Um método eficiente de coleta de solo pode ajudar muito, assim como o uso de planilhas para apuração de custos. 

A assistência técnica também ganha com isso?

Sim. Temos o exemplo de uma associada que possui mais de mil produtores cadastrados e para os quais fornece incentivo, capacitação, letramento e também recursos financeiros para que eles se adequem à agricultura regenerativa. Nesse processo, são coletadas informações do solo que realimentam outras ações. No caso dos produtores de leite, temos uma associada que investe muitos recursos financeiros e técnicos focados na bacia leiteira, para que se tenha, além da produção de um leite de melhor qualidade, uma restauração da área produtiva, com pastos melhor nutridos. E temos ainda empresas de fertilizantes, que vêm mudando seu portfólio para trazer bioinsumos, que reduzem a necessidade de fertilizantes tradicionais, o que, por si só, é uma iniciativa de descarbonização.

Para terminar, o que você vê como desafios do agro?

O primeiro desafio é aumentar o financiamento, porque sem esse tipo de política pública não conseguimos avançar. As empresas não têm recursos e braços para apoiar todo mundo, então, o governo tem que fazer a parte dele. O Plano Safra vem aumentando, é fato. Isso é muito importante, mas nem todo mundo consegue acessá-lo. Temos muito mais agricultores do que recursos e eles têm que ter outras fontes sem juros muito altos, exorbitantes, para fazer a transição para a agricultura regenerativa. Outro desafio é a capacitação, tanto do produtor como do assistente técnico. É importante que a assistência técnica esteja capacitada para a transição e não fique só na agricultura convencional. Outro desafio muito importante e que, com certeza, vai ser falado muito na COP 30, é avançar na rastreabilidade ao longo da cadeia. E mostrar que, a médio e longo prazo, o produtor vai ter lucros muito maiores – financeiros e ambientais – pois com  solo de melhor qualidade e adoção de práticas sustentáveis na lavoura , ele consegue produzir mais em menores áreas, que é o mais importante. E por fim, e não menos importante, precisamos transformar essa nossa vantagem comparativa de grande produtor de alimentos em uma vantagem competitiva. Somos exemplo para muitos países, mas não podemos ficar estacionados.