Além da carne: heparina vem do boi e salva vidas
Um dos principais anticoagulantes para tratamento de doenças silenciosas, a heparina é essencial para a saúde de milhares de brasileiros
A heparina salva vidas. O anticoagulante faz parte de tratamentos essenciais contra trombose, embolia pulmonar e até mesmo infarto, passando por processos de hemodiálise e o tratamento de casos graves de Covid-19. O medicamento é vital para milhares de brasileiros todos os dias. Leila Denise Fiorentin Ferrari, que o diga. Há 12 anos, a Engenheira Química casada com Flávio Ferrari, só conseguiu ter a sua segunda filha devido à prescrição da heparina. Além de mãe do Mateus e Mariana, Leila é professora e pesquisadora do Curso de Engenharia Química da Unioeste – Campus de Toledo e, faz parte da equipe que pesquisa formas de extrair a substância de maneira mais eficiente.
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Heparina: das tripas para o sangue
“A heparina é um polissacarídeo, tipo de açúcar, que consegue impedir ou prevenir a formação de trombos por meio da diminuição da coagulação do sangue”, explica ela. A particularidade da medicação está em como ela é encontrada: nas mucosas de vísceras de suínos e bovinos. Em alguns casos, também está nos pulmões e, em outros, no intestino.
O anticoagulante só consegue ser extraído a partir de uma série de processos sequenciais constituído de reações de hidrólise, filtração, separação e purificação. Qualquer parte desta cadeia produtiva é essencial para obter uma substância de elevada qualidade, sem oferecer risco de contaminação ao produto.
Passar por tantas fases de processo encarece a heparina. E o efeito é sentido nos seus derivados, como a heparina sódica e a enoxparina. É aí que o trabalho da Prof. Dra. Leila entra! A Engenheira Química e professora faz parte de um grupo de pesquisadores pertencentes ao curso de Engenharia Química da Unioeste, que em parceria com as empresas BRF e Marfrig trabalham para desenvolver um processo industrial de extração, separação e comercialização da heparina, a fim de torná-la mais acessível para todos. “Trabalho com processos de separação por membranas poliméricas, as quais podem também ser aplicadas nas etapas finais de purificação da heparina”, diz Leila.
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Reduzir o tempo de extração e o preço final do anticoagulante são dois objetivos que estão no foco do grupo de pesquisadores coordenado pela professora. A pesquisadora entende muito bem como o valor da medicação pode afetar a vida. “Eu precisei tomar injeções diárias de enoxaparina por nove meses. Na época, o custo de uma seringa era quase R$ 40 por dia. E isso foi em 2015”, diz a pesquisadora.
Do sangue para o coração
“Eu comecei no sentido contrário: fui consumidora e depois pesquisadora”, fala Leila. A história dela com o medicamento começou com uma profunda tristeza: a perda de seu primeiro filho Mateus. Em 2013, a professora teve uma gravidez interrompida com 26 semanas de gestação por sintomas de uma trombofilia não diagnosticada.
A doença causa um aumento descontrolado de coágulos no sangue, o que leva a inchaço, dor e falta de ar. Em alguns casos, pode até mesmo levar a um acidente vascular cerebral (AVC) ou a uma embolia pulmonar. Leila descobriu, depois do trauma, que a trombose era genética, mas passava despercebida na sua família por ter sintomas “silenciosos”.
“Descobri que algumas primas minhas tiveram abortos espontâneos. Mas esse não era um assunto muito falado e nem conhecido”, diz Leila. A dor da pesquisadora se transformou em conhecimento. Munida das informações sobre a doença, ela também soube com os médicos, que a possibilidade de uma próxima gravidez se daria por meio do tratamento com heparina.
E assim, Leila ficou grávida de Mariana um ano depois da perda de seu filho Mateus. A segunda gestação já foi acompanhada com a prescrição da enoxparina injetada diariamente na barriga, sempre no mesmo horário. “Foi uma gravidez tão tranquila, que eu fiz pilates até uma semana antes da Mariana nascer”, lembra Leila.
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Mariana nasceu em 10 agosto de 2015. “Eu sempre soube que seria mãe também de uma menina”, brinca. A pesquisadora não precisa usar mais heparina no dia a dia, mas ainda recorre à medicação durante viagens longas ou quando necessita ficar sentada por muitas horas.
Heparina: do coração para o nariz
Na época que passava pelo tratamento com a enoxparina, Leila não fazia ideia de que a medicação vinha das vísceras dos bovinos e suínos. Neste período, ela já atuava como pesquisadora na fabricação de membranas poliméricas na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), mas não era focada no anticoagulante.
Com o estudo sobre o medicamento, veio também a visão de como os subprodutos de animais podem ajudar a sociedade e como a relação universidade-indústria é o alicerce de tudo. A universidade, além de possuir profissionais altamente qualificados com formação nas mais variadas áreas, produz conhecimento científico e desenvolve tecnologias, enquanto a indústria com os seus processos de transformação da matéria-prima em produtos se beneficia aplicando este conhecimento, produzindo soluções tecnológicas. Com esta parceria, a sociedade é beneficiada com produtos cada vez mais tecnológicos e de elevada qualidade. É uma parceria perfeita, a pesquisa não tem fim e o futuro é o reaproveitamento dos subprodutos industriais”, fala a pesquisadora.
Hoje em dia, Mariana tem sete anos e diz para a mamãe que quer ser cientista quando crescer, mas a menina torceu o nariz para a heparina. Literalmente. “A última vez que a levei ao laboratório, estávamos em processo de extrair a heparina da mucosa. E, vou te dizer, esse é um momento que o cheiro no laboratório não fica nada agradável. Quando ela chegou ao laboratório, fez uma careta e falou; “mamãe do céu, o que é isso? Não quero mais saber de ser cientista, só se for para mexer com perfume (risos)”, conclui Leila.