Foto: Marcelo S. Camargo
alcione pereira
Foto: Marcelo S. Camargo

Connecting Food: solução combate a fome e o desperdício de alimentos

Objetivo da foodtech é conectar alimentos que seriam descartados por empresas, mas ainda são bons para o consumo, à Organizações da Sociedade Civil

Redação

em 27 de março de 2024


Fundada em 2016 pela engenheira de alimentos Alcione Pereira, a Connecting Food é uma startup que conecta empresas (indústrias, varejo e até restaurantes) a organizações sociais que atuam no combate à fome. “Existe um grande desperdício de alimentos no Brasil, cerca de um terço do que produzimos é jogado fora”, disse ela.

De fato, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o país perde mais de 40 milhões de toneladas de comida por ano, o que equivale a 1,6% do PIB. “Muitas vezes são alimentos bons para o consumo, perto da data de validade, mas em condições adequadas, ou alimentos esteticamente fora do padrão e que acabam sobrando nas gôndolas. Essa doação é permitida no Brasil, as empresas precisam saber que é possível doar com segurança jurídica e sanitária”, afirmou Alcione.

Segundo ela, a distribuição de alimentos que seriam desperdiçados não só é uma alternativa para o combate à fome, mas também uma oportunidade para que as empresas possam melhorar seus indicadores sociais e de sustentabilidade. “Essas ações são imprescindíveis para reduzir o desperdício de alimentos no Brasil e contribuir para a segurança alimentar da população”, destacou ela, ao Prato do Amanhã. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva.

Poderia detalhar as ações da Connecting Food?

Foto: Sociedade Providência

A Connecting Food nasceu de um grande incômodo pessoal. Como engenheira de alimentos, trabalhei por 15 anos em grandes organizações. Sempre quis usar essa experiência acumulada em um propósito maior, em uma causa de impacto. Então, por acaso, assisti a uma palestra em um evento de sustentabilidade e me deparei com os números do desperdício de alimentos no mundo.

Na época, eu não tinha a menor ideia de que um terço dos alimentos que nós produzimos são jogados fora, diariamente. Então, percebi que muitas pessoas no Brasil passam fome, e isso foi uma virada de chave para que eu buscasse uma atividade com esse viés de impacto. 

Como resultado dessa reflexão, saí do mundo corporativo e comecei a participar de um laboratório de inovação e formação de empreendedores de impacto social, que foi onde a Connecting Food nasceu. Foi nesse momento, em 2016, que criei o que chamamos, no mundo das startups, de MVP (Minimum Viable Product, ou Produto Mínimo Viável), que representa uma versão mais enxuta do projeto. Fui a fundadora e hoje sou CEO da Connecting Food, uma empresa de impacto social. 

E como foi esse processo de tirar a ideia do papel e fazer a startup funcionar?

Nesta trajetória, fui me envolvendo em todo o ambiente que cerca a redução do desperdício de alimentos no Brasil. Então, sempre buscava me conectar com pessoas, organizações e eventos que trabalham com a questão das perdas e desperdícios. Com isso, pude ter maior contato com a área e também tornei a Connecting Food conhecida. 

Nosso primeiro cliente, que foi o Grupo Pão de Açúcar, começou com um piloto em três lojas da rede. O objetivo era levar os alimentos excedentes, mas em bom estado, para organizações sociais que pudessem aproveitá-lo. No ano seguinte, começamos com quase 60 lojas, sempre fazendo essas conexões. Então, a Connecting foi crescendo a partir desse primeiro cliente. 

Como é feita essa conexão entre quem tem o produto excedente e quem precisa dele?

Nós fazemos a ponte entre quem pode doar (ao invés de descartar) e quem precisa do alimento. Nós fazemos o que chamamos de gestão inteligente de doação de alimentos. 

Então, mapeamos organizações sociais no entorno do local doador. Esse doador de alimentos pode ser uma loja de varejo, como no caso do Pão de Açúcar, uma indústria ou até mesmo um restaurante. 

Quando mapeamos quem vai doar e quem vai receber, implementamos processos internos, tanto dentro da empresa quanto nas organizações sociais, de forma a garantir que esse alimento seja transportado de uma ponta para outra, sem perder a sua qualidade. Mas a Connecting não faz a logística de transporte. O que fazemos é conectar parceiros diferentes para suprir as necessidades de organizações sociais ou bancos de alimentos. 

Nós também capacitamos essas organizações, de forma a cumprir todos os requisitos sanitários, legais, tudo o que é envolvido para que a doação ocorra de forma segura em todos os âmbitos. O nosso trabalho é fazer essa gestão. 

Além do aspecto social, os doadores têm algum tipo de incentivo?

Foto: Connecting Food

Existem incentivos fiscais, hoje, no Brasil, que estimulam a doação de alimentos, por exemplo redução de ICMS. Porém, ao mesmo tempo são incentivos que não são operacionalmente muito fáceis de serem capturados ou não são adequados, de acordo com o processo da cadeia. Por exemplo, quando falamos de uma doação feita por uma indústria, geralmente trata-se de uma quantidade maior de produtos com um prazo de validade mais extenso, mas que não seriam vendidos. A empresa recebe créditos de ICMS.

Porém, além dos incentivos tributários e do aspecto social, a indústria também deixa de arcar com os custos e obrigações do descarte adequado. Incinerar é uma coisa muito cara, e precisa ser feita com certificados, no lugar correto, adequado. 

Já para o varejo, a realidade é distinta. É comum que exista uma grande doação de frutas, legumes e verduras, que geralmente não têm ICMS. Então, neste caso o estímulo tributário não existe. Já no caso de restaurantes, a doação é um pouco mais complexa, pois geralmente são alimentos já preparados. 

Importante ressaltar que todas as doações são amparadas pela Lei 14.016, de 2020, que exime qualquer doador de alimentos de responsabilidade civil e legal sobre a doação.

Já existem pequenos comércios, e até aplicativos, que fazem a venda de alimentos perto do prazo de validade. Neste caso, por que a doação seria mais vantajosa?

Além do fato de que fazer o controle de vencimento requer grande cuidado, existe o estímulo fiscal e também o aspecto social. Claro que esse mercado secundário é uma alternativa importante para reduzir o desperdício, mas é preciso ter cuidado para evitar que o desperdício apenas mude de lugar. Por exemplo, um consumidor que encontra produtos com valor muito baixo e compra mais do que consegue consumir… e o alimento acaba sendo descartado da mesma maneira, uma vez que perde o prazo de validade.

Mas, no caso da Connecting Food, fazemos a gestão exclusivamente da doação. Neste caso, é uma iniciativa de responsabilidade social corporativa, ESG, que mostra o impacto social das empresas. É importante não ficar apenas no discurso, mas adotar ações práticas, que demonstrem a preocupação com essa agenda. 

Como funcionam os indicadores de impacto ambiental da Connecting Food?

A Connecting trabalha com diversos indicadores de impacto. Então, mensuramos desde a quantidade de alimentos doados, quantas pessoas são impactadas, quantas refeições são complementadas pelos produtos doados, em quais regiões, quais os alimentos. Com isso, fornecemos uma série de dados para as empresas doadoras. Isso passa a integrar, por exemplo, os relatórios de sustentabilidade das empresas. Essa captura de dados é muito importante para as organizações e precisa ser feita de maneira bastante controlada. Atualmente, temos uma série de 20, 30 indicadores diferentes, de acordo com as necessidades de cada um dos clientes.

Quais tecnologias são usadas para mensurar todos os dados e rastrear as doações?

Utilizamos várias tecnologias. A Connecting funciona como um ERP, um sistema integrado e conectado. E hoje a gente usa esse sistema como um modelo de gerenciamento e captura de dados.

Então, as tecnologias envolvidas são várias e permitem no dia a dia que a gente acompanhe todas as informações em um dashboard. Com esses indicadores, tudo funciona de uma forma automática. Por trás da tecnologia, temos muita inteligência artificial, blockchain e diversas linguagens de programação, que constroem esse modelo de gestão. Tudo isso traz agilidade aos processos, o que é essencial, especialmente quando falamos de itens perecíveis.

Como a Connecting mapeia os beneficiados pelas doações? 

A gente não trabalha com a entrega de alimentos direto para as pessoas beneficiadas, mas sim para organizações sociais que atendem as pessoas em vulnerabilidade. O mapeamento é feito de diversas formas, há entidades que entram em contato conosco, por exemplo. Já em cidades menores, fazemos uma busca ativa, entrando em contato com prefeituras ou organizações, associações locais que possam nos indicar organizações sociais. E mantemos tudo no nosso banco de dados, porque quando surge um parceiro em uma determinada cidade, já temos uma organização mapeada. A ideia é conectar entidades e doadores em regiões próximas, mas podem haver exceções. 

Quantas entidades a Connecting Food já ajudou?

Atualmente temos mais de mil pontos de doação, estamos em quase 300 cidades, nos 27 estados. Já gerenciamos mais de 13 mil toneladas de alimentos, quase 580 organizações sociais, já complementamos mais de 25 milhões de pratos com essa gestão. 

Qual o caminho para empresas que queiram ser doadoras?

Basta entrar em contato conosco, pelo nosso site ou redes sociais. Então, nós avaliamos qual a necessidade da empresa. Existem algumas que já fazem doações, mas que querem, por exemplo, a integração com os indicadores, ou mesmo melhorar a capilaridade, possibilitando que os alimentos cheguem a outras organizações.

Então, fazemos esse diagnóstico da necessidade e implementamos esse processo nas empresas. 

O que são as iniciativas Todos à Mesa e o Pacto Contra a Fome?

O Todos à Mesa foi fundado, em conjunto, pela Connecting Food e o iFood, e é a primeira coalizão brasileira de empresas focadas na redução do desperdício de alimentos e em estratégias para minimizar os impactos da fome.

Essa coalizão já tem mais de 30 empresas brasileiras, dentre as maiores produtoras de alimentos e maiores varejistas do país.Trabalhamos uma área de advocacy, que é a área de políticas públicas para impulsionar a doação de alimentos no país, a redistribuição de alimentos e a redução do desperdício. Temos um pilar chamado de operações, cujo objetivo é promover as melhores práticas dentro de processos industriais ou varejos, para melhoria operacional das doações. E um pilar de comunicação, como é que a gente divulga mais informações com relação a essa área. 

Já o Pacto Contra a Fome tem a estrutura de uma organização social, que trabalha com políticas e iniciativas voltadas à redução da fome no país. Eu fui uma das 40 cofundadoras desta iniciativa, e atualmente trabalhamos levando informações, avaliando como potencializar projetos. 

Nosso trabalho também é disseminar informação e conhecimento, por meio da educação e de treinamentos, que vão desde a manipulação adequada dos alimentos até cuidados relativos ao transporte e armazenamento.