carla gheler

Combater o desmatamento ilegal é o primeiro passo para reduzir emissões

No Brasil, o chamado uso do solo responde por grande parte das emissões de gases de efeito estufa, embora o desmatamento seja o grande vilão

Redação

em 28 de julho de 2023


Na maior parte do planeta, o setor de geração de energia é o principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa. No Brasil, no entanto, a participação relevante de fontes renováveis na matriz energética faz com que essa não seja a atividade com maior impacto. O uso da terra – ou melhor, o mau uso, que envolve atividades que levam ao desmatamento ilegal – é o principal ponto de atenção. 

“Diversas atividades fazem uso da terra, da agropecuária à mineração. Quando existem boas práticas, isso não é um problema. Já o desmatamento ilegal é o principal causador das emissões de gases do efeito estufa no Brasil”, disse Carla Gheler, coordenadora da Câmara Temática de Sistemas Agroalimentares do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). 

Segundo ela, várias iniciativas podem contribuir para combater o desmatamento. “A agricultura regenerativa é uma das técnicas mais importantes nesse sentido, fazendo a transição para modelos de produção mais sustentáveis”, explicou Carla, mencionando que existem outras técnicas importantes, especialmente o avanço das tecnologias conhecidas como “agricultura 4.0”, que permitem a elevação da produtividade, simplificam o controle e promovem o melhor uso de recursos. “Não conter as emissões de gases do efeito estufa significa, também, colocar em risco a produção de alimentos”, alertou. 

Confira os detalhes nesta entrevista exclusiva ao Prato do Amanhã, na qual Carla destaca os avanços no setor agropecuário nacional e as iniciativas do CEBDS para promover a transição justa e a resiliência em relação às mudanças climáticas. 

A segurança alimentar é um dos pilares da transição energética justa. No Brasil, como conciliar a produção de alimentos com o uso consciente da terra?

emissoes desmatamento ilegal

Precisamos, primeiro, entender que o uso da terra engloba diversos tipos de atividades, da agricultura à mineração, e envolve também, em alguns casos, o desmatamento ilegal, que hoje é o principal causador das emissões de gases do efeito estufa brasileiras. 

Assim, o primeiro passo para o Brasil reduzir as emissões é adotar estratégias para combater esse desmatamento ilegal. 

Além disso, é importante incentivar a agricultura regenerativa, que consiste em um conjunto de boas práticas e que, segundo o Fórum Econômico Mundial, é uma das estratégias mais importantes na transição para modelos de produção mais sustentáveis, produtivos e inclusivos. 

Se o modelo de agricultura regenerativa for adotado em larga escala, até 2030 a expectativa é de que isso gere negócios de US$ 1,4 trilhão por ano, e crie 62 milhões novos postos de trabalho no mundo. No CEBDS, temos diversas empresas que usam esse modelo e incentivam seus fornecedores a fazerem o mesmo.

Poderia detalhar melhor como funciona a agricultura regenerativa?

Existem diversos exemplos de práticas de agricultura regenerativa. Um deles é o Sistema Plantio Direto, que já é usado no Brasil há 51 anos e é o mais adequado para a realidade do solo brasileiro. Ele é baseado em três pilares: o não revolvimento do solo (restrito à linha de semeadura ou covas para mudas), a cobertura permanente do solo (plantas vivas ou palhadas) e a diversificação de plantas na rotação de cultivos. Atualmente existem cerca de 33 milhões de hectares que adotam esse sistema.

Outros exemplos de boas práticas são a Integração Lavoura, Pecuária e Floresta (ILPF), o uso de bioinsumos, o tratamento de dejetos da produção animal, a circularidade da água na propriedade rural, a rastreabilidade e certificação da produção, a transição energética e a recuperação de áreas degradadas. São práticas que vêm sendo adotadas por cada vez mais empresas, principalmente na última década, como resposta às mudanças climáticas e, também, como estratégia para melhoria na produção e qualidade dos alimentos produzidos.

Você mencionou que o uso da terra engloba diversas atividades. Poderia explicar como elas são classificadas, em relação às emissões? 

O termo “uso da terra” se refere a qualquer atividade humana que transforma geograficamente a vegetação nativa, causando impacto aos recursos naturais disponíveis, como a disponibilidade e qualidade da água.

A conversão de áreas de vegetação nativa para agricultura, pecuária, silvicultura, mineração e criação de áreas urbanas, entre outros, são exemplos que ilustram o conceito de “uso da terra”. 

A grande questão é que as mudanças de uso da terra responderam por 49% das emissões brutas de gases de efeito estufa do país em 2021, o que mostra que, realmente, é algo com que a sociedade, os governos e as empresas têm de se preocupar. Esse índice vem de dados do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases (SEEG), que aponta que, além do uso da terra, em seguida estão os segmentos da agropecuária, com 25%, energia e processos industriais, com 22%, e resíduos, com 4%.

É importante destacar que, dentro da fatia relacionada às mudanças no uso da terra, o desmatamento da Amazônia é o principal vilão, respondendo por 77% das emissões brutas do setor em 2021. Já as emissões por queima de resíduos florestais representam 7,8% das emissões do setor.

Tivemos avanços nos últimos anos para reduzir as emissões decorrentes do uso da terra?

Sim, na última década ocorreram diversos avanços, principalmente no que diz respeito ao uso de tecnologia e inovação, que trouxeram melhoramento de plantas, projetos de transição energética com geração de energia por meio de dejetos (com produção de biogás e biometano) e crescimento do uso de bioinsumos, entre outros.

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A chamada agricultura 4.0 (também conhecida como agricultura digital ou de precisão) trouxe várias contribuições, pois ela envolve um conjunto de tecnologias de ponta, desenvolvidas para a integração da produção agrícola. Esse novo modelo de agricultura contribui para elevar os índices de produtividade, a eficiência do uso de insumos, melhorar a qualidade do trabalho e a segurança dos trabalhadores e diminuir os impactos ao meio ambiente. 

Como a agricultura 4.0 contribui para a redução de emissões?

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A tecnologia engloba a agricultura e pecuária de precisão, a automação e a robótica agrícola, além de técnicas de big data e Internet das Coisas (IoT)

A Internet das Coisas torna possível monitorar e gerenciar operações a centenas de quilômetros de distância, rastrear bens que cruzam o oceano ou detectar a ocorrência de pragas ou doenças na plantação. Isso é uma ferramenta importante para a inovação na produção de alimentos e para a segurança alimentar. O aumento da produtividade, por exemplo, com a redução da área utilizada, é uma das maneiras de reduzir os impactos ao meio ambiente e, por consequência, de diminuir as emissões. 

Como o desmatamento ilegal segue com altos índices, ainda temos um grande desafio pela frente para reduzir as emissões, mas o Brasil já conta com uma série de técnicas que permitem aumentar a produtividade da agropecuária de forma sustentável. E essas técnicas devem ganhar cada vez mais espaço. 

Essas tecnologias tornam a gestão da fazenda mais inteligente, simples e eficiente, ajudando os produtores a maximizarem seu lucro, melhorarem a sustentabilidade da produção e aumentarem a produtividade da safra. Assim, a Agricultura 4.0 pode ser uma grande aliada para aumentar a efetividade de ações em torno da Agricultura de Baixo Carbono.

Soluções para rastreabilidade na pecuária podem ser um instrumento para o combate às emissões? Isso pode, inclusive, contribuir para a preservação de florestas?

Sim, a rastreabilidade é uma ferramenta importante para que possamos conhecer a origem do que estamos consumindo, a qualidade dos processos e as práticas atreladas à produção, ao processamento e à distribuição. De forma geral, ela nos mostra o caminho, com detalhes, de um processo que se inicia muito antes do plantio e que termina no nosso prato. 

A rastreabilidade de alimentos possibilita transparência e segurança na cadeia produtiva, além de agregar valor ao produto. Com isso, você acaba combatendo o desmatamento e contribuindo para a redução das emissões de gases de efeito estufa. 

Mas, apesar de necessária, a rastreabilidade não é algo fácil de se aplicar em uma empresa, pois ainda tem alto custo, exige capacitação dos produtores e demais elos da cadeia e carece de transparência, entre outros fatores.

Além disso, ainda não temos um sistema nacional de rastreabilidade e certificação, capaz de monitorar os fornecedores diretos e indiretos, o que dá margem para a atuação de desmatadores ilegais. Essa lacuna traz riscos de mercado e de estabilidade financeira para o Brasil, uma vez que as commodities brasileiras já estão sujeitas a sanções, como as previstas pela regulamentação europeia, que proíbe a importação de produtos provenientes de áreas desmatadas de florestas tropicais.

É urgente a criação de um sistema nacional de rastreabilidade e certificação, pois todos os setores e elos da cadeia produtiva ganharão, incluindo o consumidor final.

Poderia detalhar o programa Inteligência Agroclimática e sua importância para a redução de emissões?

O programa foi uma iniciativa desenvolvida pelo CEBDS entre 2018 e 2020, e era baseado em um programa internacional chamado Climate Smart Agriculture (CSA). A iniciativa discutia soluções para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e aumentar a disponibilidade de alimentos nutritivos, buscando formas de garantir produtividade, aliada à resiliência do produtor de alimentos às mudanças climáticas. 

As discussões que tivemos no âmbito desse programa evoluíram nos últimos anos e o foco da nossa Câmara Temática de Sistemas Agroalimentares, no momento, é a agricultura regenerativa. Entendemos que ela é o caminho para aliar produtividade e sustentabilidade. 

O Brasil é um importante produtor mundial de alimentos e, para continuar produzindo cada vez mais e melhor, é fundamental que tenha técnicas sustentáveis e ajude a combater o aquecimento global. As mudanças climáticas são um grande fator de risco para o agronegócio, já que interferem em questões como a qualidade do solo e o ciclo das chuvas, e podem levar à perda de safras – algo que já ocorre com certa frequência. Ou seja, não deter o avanço das emissões de gases de efeito estufa significa colocar em risco a produção de alimentos. 

Nesse sentido, o CEBDS vem desenvolvendo ações de capacitação, advocacy e engajamento junto às empresas, para avançarmos na agenda da agricultura regenerativa, sustentável, justa e resiliente às mudanças climáticas.

Qual é a importância da agropecuária para o alcance do ODS 2, da ONU, na visão do CEBDS?

A agropecuária tem papel fundamental no combate à fome, um compromisso previsto no ODS 2 (Fome zero e agricultura sustentável), por ser o setor responsável por produzir os alimentos de que o mundo precisa. No entanto, para produzir em quantidade suficiente para alimentar a população global, que tem crescido rapidamente, em um cenário de mudanças climáticas, esse segmento precisa mudar drasticamente nos próximos anos. 

Eu diria que a produção de alimentos deve passar por uma nova revolução agrícola, quase comparada à que vivemos há cerca de 12 mil anos, quando surgiram os primeiros registros de agricultura pelo homem. Precisamos adotar em larga escala práticas mais sustentáveis, que não agridam o meio ambiente, e também mais eficientes, que ajudem a produção de alimentos a aumentar na velocidade necessária. Além disso, é fundamental um grande esforço no combate às perdas e desperdícios. 

Segundo a ONU, a média de emissões geradas no mundo pela perda de alimentos é de 7% do total dos gases que causam o efeito estufa, e quase 30% da terra agricultável é ocupada para produzir os alimentos, que acabam nunca sendo consumidos. A perda de alimentos (ou desperdício) ocorre nas fazendas, nos estoques de comida, em trânsito, nos comércios, em casa e outras partes, e é um aspecto para o qual também precisamos olhar com atenção. 

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